terça-feira, 25 de maio de 2010

Quintal de casa


A pálpebra pesa pela festinha da véspera, mas é sábado, dia de surfe no quintal. Boto o short de pano colorido ainda úmido da caída da véspera, tomo o Nescau numa só golada, cato uma mão de biscoito Maizena e pego minha Hidrojets amarela limão reluzente, que tem um inconfundível cheiro de fibra e pequenas bolhas de sal roubadas do mar.

Short no corpo e prancha na mão, é hora de alcançar o paralelepípedo da Sambaíba, amaciado pelo tempo. As pedras – como as do mar – têm pontas arredondadas. Aos 13 anos, piso sem medo, com passadas ligeiras para reduzir a distância entre meu quarto e meu quintal, a praia do Leblon. Flutuo pelos degraus, de três em três, na escada que chega ao Baixo. Na rua do canal, o cheiro de maresia é o doping que faltava: num último pique, alcanço o calçadão.

Aquela praia abandonada, frequentada apenas por alguns poucos moradores do bairro, é o meu quintal, onde eu me reconheço como gente. A ondulação escorre de Leste na bancada de areia, levantando pequenas esquerdas na bancada fofa. Piso nos grãos ainda gelados das seis horas da matina, e avanço contra o sol até chegar ao pico, em frente ao Posto 12.

Na água, antes das ondas, respiro o odor de esgoto – o único veneno naquele paraíso. Micoses pela pele e amigos com hepatite denunciam a intolerável condição de banho. Mas, para um adolescente nascido naquele quintal, a condição dada é a condição vivida, aceita. Como o garoto que, na falta de um campo gramado para bater uma bola, joga descalço num lixão.

Os locais são os maiores ídolos – Coquinho, Pixote e especialmente Ricardinho. Não me lembro de ter visto Ricardinho em alguma competição, mas, para mim, ele é o cara. Os anos de ginástica olímpica lhe deram a flexibilidade para se entortar em drops magnéticos e passear por dentro de ondas ocas que nós, moleques mortais, nem remamos.

A molecada já tenta disputar o pico. Xandi, Júnior, Lúcio, Alica, Tiquinho, Minami, Merreca e uma pá de outros moleques remam de um lado para o outro, atrás das sobras. Tem também uma galera mais cascuda: Alfredo, Rivaldo, Esquilo, Brabão. E o excêntrico Gel.

Volto para casa, depois de quatro horas na água. Arroz, feijão e, depois, o embalo de uma sesta. Acordo aos 37 anos, pronto para mais uma caída.

A pálpebra ainda pesa pelo sono curto provocado pela noite mal dormida das filhas. Boto um short de tactel ressecado pelas semanas sem surfe, cato a mesma mão de Maizena, tomo um copão de mate e pego minha Joca Secco modelo fish, para aguentar a falta de ritmo de remada. A prancha, de tanto tempo sem ver água salgada, nem gordura de maresia tem.

O caminho entre a casa e o quintal é um pouco maior. Boto a Joca no rack da bicicleta, calço as Havaianas e desço a ladeira com a mão colada no freio para não perder o controle da velha Giant. Mas quero chegar o mais rápido que eu puder ao quintal dos tempos de moleque. Cada minuto ali, agora, tem o valor de uma eternidade.

É um sábado de sol, é fim de tarde. A praia não está mais vazia. Virou a faixa de areia preferida pela molecada formadora de opinião. Princesas e garotões se espalham pela areia. O Leblon, antes um recanto familiar esquecido no fim de uma linha de ônibus, virou um Principado de Montecarlo tupiniquim, com desfile diário de celebridades e água mineral a mais de R$ 4.

Consegui ficar por já morar lá há décadas, desde os tempos do velho bairro de classe média remediada, quando os novos ricos ainda não inflacionavam o mercado em busca de status.

Mas o velho quintal ainda está lá. As ondas estão um pouco diferentes, por causa dos sucessivos aterros de areia para conter a violência das ressacas de Sul. Mas, hoje, linhas suaves de direita lambem a pedra do Pontão e escorrem até a areia. A velha Disneylândia.

Os ídolos da molecada agora têm um currículo de respeito: Marcelo Trekinho foi campeão brasileiro, Marcos Sifu é um dos maiores especialistas em aéreo do mundo. Os moleques e cascudos dos anos 80 envelheceram, mas não largaram o Leblon. A eles, juntaram-se todas as gerações que vieram em sequência. Sim, o pico está mais cheio. Às vezes até desconfortável. E ainda sofre com eventuais descargas irresponsáveis de esgoto em cima dos surfistas.

Mas o prazer de envelhecer no quintal de casa, no cenário preferido de sua vida, supera qualquer coisa. Ir surfar a pé ou de bicicleta, encontrar todo mundo pelo caminho, jogar conversa fora entre uma onda e outra, acertar a manobra só porque você conhece de olhos vendados a curva que a onda faz ao quebrar, perceber a diferença sutil dos tons de azul do céu e as sombras do Morro Dois Irmãos, acertar o horário de migração dos biguás e, claro, passar a vida sobre uma prancha, perto de casa: são presentes que só um quintal pode dar.

Fonte: Waves

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